Há um conflito crescente no mundo.
Não é de hoje, mas está cada vez
mais amplificado, reconhecido, analisado.
Há um conflito crescente no
mundo, que se acentua a seu modo na América Latina, entre o atual estágio do
capitalismo mundial que se tornou um fim em si mesmo, e a vontade manifesta das
populações premidas pela necessidade de verem invertidas as tendências de
aumento do desemprego, da precarização do trabalho, da fome e da miséria, com
todas as suas consequências de exclusão e marginalização de que são
indicadores, por exemplo, a violência crescente, tanto social quanto estatal de
“controle”, esta última como um dos sintomas da incapacidade dos estados
nacionais, engessados pela invasão poderosa dos lobbies e de prepostos que
desvirtuam e mesmo impedem-no de cumprir
a missão que lhes é própria: zelar pelo interesse da coletividade, ou interesse
público, mediando as ações privadas, estabelecendo regras, pisos e tetos,
protegendo o meio-ambiente, trabalhando pela sobrevivência organizada de toda a
população.
Trata-se de um trabalho de peso
que requer estadistas: pessoas que necessariamente têm de ter conhecimento de
como funciona o Estado Democrático de Direito, quais as funções institucionais
de um estado democrático, sua Constituição e suas Leis, e conhecimentos de
Ciência Política, além de uma visão atualizada dos fenômenos sociais que estão
a acontecer a partir da revolução comunicacional que ampliou
extraordinariamente, para o bem e para o mal, a circulação de ideias, a
publicidade política, negocial e de consumo.
Não é novidade histórica a
prevalência de Estados poderosos, sua cultura e instituições sobre outros
estados. Não é novidade histórica a colonização de países e regiões, primeiro
pelo “descobrimento”, pela invasão e submissão dos nativos, pela imposição
subsequente de leis e ordenamentos jurídicos, pela escravização, pelo
estabelecimento de uma relação assimétrica entre Colonizadores e Colonizados. Subsequentemente
estamos a conhecer outras formas de colonização, menos agressivas, sutis, eu
diria, mas não menos invasivas e imperiosas. Ninguém pode negar que o fato de
ouvirmos, nas colações de grau, quase exclusivamente músicas americanas, é
sinal inequívoco, quase naturalizado, de subserviente colonização. Também não
me passou despercebida a invasão dos bonés, isto já tem tempo, típico utensílio
americano.
São exemplos prosaicos porquanto
implicam troca de um costume por outro. Mas quando deixa de ser uma troca para
caracterizar a coerção invisível pela assunção de papel subalterno, por
exemplo, no plano econômico, a coisa ganha enorme importância. Trocar o chapéu
pelo boné ou substituir música americana pela brasileira, em determinados
momentos, vá lá. No quesito música só posso lamentar, sinto enorme falta de
ouvir o riquíssimo som brasileiro em nossas formaturas. O fenômeno da
assimilação e troca culturais num mundo cada vez mais globalizado é natural.
Mas foi e ainda é forte a componente colonização nesse processo. É preciso, portanto,
ter consciência crítica.
Afastado o olhar (os ouvidos e o
cérebro) do barulhento midiático presente pontual, não será difícil perceber
que vivemos outro ciclo de colonização e controle humanos. Ampliado o
horizonte, podemos perceber uma espécie de império que ultrapassa todas as
nações. Seu poder reside no fato de controlar a única mercadoria que é, ao
mesmo tempo, todas as outras, a mercadoria por excelência, a mercadoria geral:
o dinheiro. Esse poder invadiu as instituições do planeta, notadamente os
poderes Executivo e Legislativo, através de lobbies e prepostos, arrefecendo os
controles estatais, retirando salvaguardas e limites à sua ação, impondo e
controlando condições de endividamento, prescrevendo toda uma “filosofia” de
desenvolvimento fortemente apoiada na mídia e no marketing (desenvolvimento que
se esboroou com as crises sucessivas e seu ápice (por enquanto) em 2008), criou
as tais agências de risco, através das quais dão notas a países e instituições,
invertendo definitivamente a relação entre o público e privado: os estados
passaram a ser tributários do imperial poder financeiro que, em última análise,
submete também o setor privado produtor de bens e serviços.
Ou seja, o domínio do capital
financeiro não se restringe ao controle dos Estados. A produção de bens e
serviços, condição essencial para a criação de emprego e renda, também está
submetida ao império das finanças. Não à toa cresce o rentismo: desvio de grana
do setor produtivo para o setor financeiro. Mas isso não tem futuro, uma vez
que o encolhimento da renda do trabalho determina a retração do consumo, que
significa a redução de mercados e a marginalização crescente de parte da
população. O que garante o capital aplicado em ações, fundos, etc., é a saúde
dos ativos da economia, tanto quanto a saúde socioeconômica da população.
Acresça-se hoje a questão climática a exigir mudanças drásticas.
Paralelamente, distanciou-se e,
de certa forma, restringiu-se a representação das populações junto aos
legislativos. É o que todos dizem sobre a falência da democracia enquanto
sistema de representação pública. A questão crucial do financiamento de
campanha, e nela a participação efetiva do poder econômico através de empresas
e organizações patronais, que têm capacidade de lançar e financiar seus
próprios representantes, ocupando o cenário com promessas que, no fim das
contas, configuram verdadeiro estelionato eleitoral, já que, em verdade, tais
representantes defendem interesses privados, muitos dos quais sem conhecimento
básico do funcionamento das instituições públicas e de sua função, de
administrar, com independência e visão crítica, a coisa pública e o interesse
coletivo.
É nítida a necessidade de que
postulantes a cargos eletivos sejam obrigados a estudar tudo sobre
Administração Pública, seu objetivo, estrutura e funcionamento, sob a égide do
Estado Democrático de Direito. Se para dirigir um veículo o cidadão precisa se
submeter ao Código Brasileiro de Trânsito, imagine para dirigir um país, um
estado ou município, ou para representar o cidadão junto às casas legislativas,
sempre em prol do interesse público? Por que a administração do coletivo é
tratada dessa maneira improvisada, apenas se cuidando das “formalidades
legais”? Não é preciso lembrar o denodo ideológica com que o poder vigente
quer, senão acabar, reduzir ao máximo o Estado? Se fosse alternativa competente
para resolver os problemas aqui levantados, estaríamos bem. Infelizmente, até
agora, tudo indica que não é. Aparentemente a solução mais próxima seria a de
um equilíbrio responsável entre público e privado.
Não há mais mercados livres,
concorrenciais, exceto para a miríade de pequenas e médias empresas que ainda
caracterizam certos setores de produção e prestação de serviços. Mercados e
concorrência nunca foram perfeitos, mas existiram num período em que o tamanho
das unidades empresariais não implicava domínio regional ou mundial, e o
capital financeiro era capital de risco: eventuais falências pouco abalavam o
sistema em que a concorrência entre muitas empresas garantiam os níveis de
produção. Isso foi paulatinamente destruído com o processo de fusões que
concentraram poder de mercado em empresas multinacionais e transnacionais e
também novas relações de poder entre Estados e Empresas. Estas, por efeito dos
lobbies e da “invasão” da área pública por representantes empresariais nas
casas legislativas, fizeram arrefecer os controles Estatais sobre a questão da
concorrência e outras questões, especialmente as relativas ao funcionamento do
subsistema financeiro.
Tudo indica que evoluímos assim:
não somos capazes de saltos extraordinários. E, ao contrário, estamos
experimentando retrocessos. Mas ainda é tempo, escasso tempo para a mudança de
paradigmas, enquanto as condições ambientais se agravam e agravam a enorme
desigualdade entre países e populações, e se fragmentam muitos Estados
nacionais, e se deterioram as regras, valores, convenções, que caracterizam o
chamado Estado moderno, ápice a que chegou o desenvolvimento histórico da
sociedade humana.
Há conhecimento para mudar, para estudar tudo isso com olhar
crítico, o que, em verdade tem sido feito, à margem da grande corrente
dominante, cuja força de persuasão ideológica repousa hoje no domínio
organizado das tecnologias de comunicação que, no entanto, também
instrumentaliza a crítica e as reinvidicações de mudança. Mas, não tenho
nenhuma dúvida de que tal domínio poderá impor, em consonância com o poder
Estatal crescentemente “privatizado”, restrições ao uso democrático destas
tecnologias.
Um comentário:
Belo artigo demonstrando também e mais uma vez, a criatura, a doença e o remédio... o Estado, o Rentísmo e a difícil/fácil saída...
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